Maria Lídia dos Santos Magliani (1946–2012) é um dos nomes mais fascinantes e ainda subestimados da história da arte brasileira. Pintora, desenhista, gravadora, ilustradora, figurinista, atriz e diagramadora, construiu uma trajetória marcada por intensidade, inquietação e absoluta independência. Nascida em Pelotas, deixou um legado expressivo no país, mas ainda pouco conhecido por grande parte do público da própria cidade. Sua vida, cheia de deslocamentos, contrastes e profundidade, também ajuda a entender como figuras essenciais podem permanecer à margem da memória coletiva por tanto tempo.
Magliani viveu os primeiros anos em Pelotas e mudou-se ainda criança para Porto Alegre, em 1950. A infância repartida entre ambientes muito distintos ampliou sua percepção sobre desigualdades e tensões sociais, elemento que mais tarde aparece em sua obra. Suas pinturas mergulham em estados de espírito, solidão e conflitos humanos sem recorrer à ilustração direta da violência, mas provocando sensações fortes no observador.
Em 1963, ingressou no Instituto de Artes da UFRGS e concluiu o curso três anos depois, tornando-se uma das primeiras mulheres negras formadas em Pintura na instituição. Com incentivo do professor Ado Malagoli, realizou sua primeira exposição individual no ano da formatura. Já naquele início era possível perceber a força que marcaria toda a sua produção: corpos que ocupam o espaço, figuras nuas, paletas densas e expressões tensionadas. Sua arte nunca buscou suavidade. Criava não para agradar, mas para interrogar.
Ao longo da vida, Magliani transitou por diferentes linguagens. Trabalhou em gravura, colagem, cenografia, figurino e ilustração, além de manter longa atuação no jornalismo. Nos anos 1970, esteve em redações como Folha da Manhã, Zero Hora, Diário de Notícias, O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo, onde também consolidou a amizade com Caio Fernando Abreu, presença frequente nas conversas e corredores. A década de 1980 marcou sua mudança para São Paulo e sua inserção mais visível no circuito nacional. Participou de salões e coletivas importantes e integrou a Bienal Internacional de São Paulo em 1985. Mais tarde, viveu em Tiradentes, no Rio de Janeiro, retornou brevemente a Porto Alegre e voltou novamente ao Rio. Em cada lugar, manteve a produção intensa que a caracterizava.
Magliani enfrentou episódios de racismo durante a vida, mas recusava rótulos identitários. Defendia que sua obra deveria ser lida antes de tudo como arte, e que classificações externas apenas reforçavam desigualdades históricas. Sua postura não eliminava consciência política; apenas revelava o desconforto com categorias que lhe pareciam limitadoras.
A artista morreu em 21 de dezembro de 2012, aos 66 anos, em um quarto simples na Lapa, no Rio de Janeiro. Produzia até o fim, apesar dos poucos recursos e da falta de visibilidade no circuito artístico naquele período. Após sua morte, amigos organizaram o funeral e o artista Julio Castro assumiu o cuidado do acervo, criando o Núcleo Magliani no Estudio Dezenove, dedicado a preservar e catalogar sua obra. Uma década depois, em 2022, a Fundação Iberê Camargo realizou a maior retrospectiva já dedicada a ela, com mais de 200 obras de mais de 60 coleções. A mostra reacendeu o debate sobre sua relevância e consolidou Magliani como figura central da arte brasileira contemporânea.
Em Pelotas, a presença de Magliani começa a ganhar novos contornos. Desde 2023, uma escola municipal de educação infantil no bairro Sítio Floresta leva seu nome e atende 171 crianças. Para muitas famílias, o nome está no cotidiano, ainda que sua história não esteja. No mesmo ano, o Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo sediou a exposição itinerante “Magliani – Obra Gráfica”, que apresentou cerca de 70 gravuras e pinturas da artista e marcou seu retorno oficial à cidade natal.
Revisitar Magliani é reconhecer a força de uma artista que produziu com integridade, coragem e sensibilidade raras, mesmo diante de dificuldades e silenciamentos. Também é uma oportunidade para Pelotas se reconectar com uma de suas criadoras mais importantes. Em uma de suas cartas, ela escreveu: “Sempre é começar tudo de novo, duvidar e recomeçar.” Sua obra segue esse movimento. Retorna, provoca e abre novas perguntas. Cabe à cidade ouvi-las.


